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Artigo de Augusto Falcão—Liberdade de Abril

Escrevo isto, no dia da Liberdade; eu sei que, aos vossos olhos, pareço repetitivo, mas, nunca é demais falar da liberdade.

Esperei por hoje, pensando eu, que nos discursos de tão grandioso dia, algum destes discursos me pudesse inspirar, mas chego ao fim do dia desiludido.

Nada das palavras das elites, quer locais, quer nacionais me inspira a fazer este texto.

Desloquei-me ao jardim ao lado do município para assistir às comemorações deste dia, que pertence a todos os portugueses, sejam eles de direita ou de esquerda, novos ou velhos, e assisti apenas a uma coisa: à liberdade de nos exprimirmos conforme o que nos vai na alma; substância tinham alguns, mas de resto, pouco apropriados para a data.

Sendo assim, hoje vou falar-vos do Júlio, nome fictício…

O Júlio era um homem, casado, que tinha um emprego bom (trabalhava num escritório), e não tinha filhos ainda durante o Estado Novo. Casou-se com a mais velha de três irmãs e vivia numa casinha modesta, numa aldeia do Ribatejo; trabalhava num escritório da cidade junto à aldeia onde vivia; trabalhava de segunda a sexta, sábado e domingo era dedicado a ir à missa, e junto dos cunhados.

Mas Júlio tinha um pecado; um segredo escondido; Júlio era membro do PCP, partido que operava na clandestinidade, que lutava contra a ditadura de Salazar; Júlio ajudava os membros do PCP local, a difundir a propaganda comunista.

Júlio, um belo dia, sabe que vai ser pai; Júlio todo contente, porque vai ser pai, trabalha com afinco, para que o seu filho possa ter uma infância um pouco melhor que a grande massa das crianças; ou para que pelo menos sobreviva ao nascimento.

Estava a mulher de Júlio grávida, numa noite, já de madrugada Júlio e a mulher são acordados pelo bater furioso na porta. Ao abrir a porta, Júlio é preso e levado por inspetores da PIDE.

A mulher grávida, no dia seguinte vai à sede da PIDE à cidade, onde lhe dizem que o marido está detido para responder por crimes contra o Estado, difundir propaganda comunista e nada mais lhe dizem.

Júlio é levado para Peniche, onde fica preso…  Durante a sua estadia em Peniche, a PIDE bate-lhe, tortura-o, ameaça-o de morte, para que Júlio denuncie os camaradas. Mas Júlio resiste. Nada diz, mas as mazelas já estavam feitas.

A mulher cá fora, vê o filho nascer, com o marido preso, e sem saber onde ele estava para ao menos dar-lhe a boa nova e visitá-lo.

A mulher, com o filho recém-nascido, dirige-se à PIDE mais uma vez, onde pede para ao menos ver o marido. A PIDE nada diz, nada faz.

O filho ao fazer 3 meses, é vislumbrado pela primeira vez por ele. Júlio é libertado, de Peniche, e dirige-se a casa. As mazelas dos maus-tratos da PIDE, manter-se-ão ao longo da sua vida; o acordar em sobressalto com qualquer barulho, os problemas respiratórios devido a costelas partidas mal saradas, a ansiedade profunda… as marcas dos “chicotes” nas costas… os dedos artrosados, das fraturas que os interrogatórios provocaram…

Júlio cria o filho o melhor que pode; por sorte o antigo patrão aceita-o outra vez; Júlio regressa ao escritório onde trabalhava; anos depois, Júlio, comunista convicto, mas afastado das operações clandestinas que o levara a cadeia, vê no cais de Alcântara o seu filho partir para Moçambique para a guerra colonial. Júlio, vê o seu filho regressar, mas vê o seu afilhado partir para Angola para a mesma guerra. Júlio vê o seu afilhado regressar.

Júlio vê o 25 de abril, a liberdade, e morre na liberdade, depois de ter vivido na opressão; Júlio, comunista convicto, lutou contra a ditadura; Júlio, é um personagem, que encarna, milhares de Júlios, que lutaram contra a opressão de um estado opressivo e que os livros de história não falam.

Aos milhares de homens e mulheres que lutaram pela liberdade de um povo, triste e cinzento; Abril não é só os capitães, Mário Soares, Álvaro Cunhal entre outros; Abril é também dos Júlios… massacrados e torturados e até mortos pela liberdade de um povo e de um País…

Augusto Falcão

 

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