O último Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) regista um crescimento de 8,7 % no número de ocorrências de delinquência juvenil entre jovens dos 12 aos 16 anos, totalizando 1.833 atos em 2023, e com tendência a aumentar.
Em simultâneo, multiplicam-se os discursos públicos e as campanhas sobre saúde mental: escolas que falam de ansiedade, redes sociais que promovem o “bem-estar emocional”, programas institucionais dedicados à literacia em saúde mental. Contudo, quando olhamos para casos extremos de agressões familiares, homicídios cometidos por adolescentes ou episódios de violência entre pares, percebemos que algo falha. É importante que a saúde mental esteja na ordem do dia, mas não basta falar dela, é preciso agir, cedo e de forma integrada.
O caso recente do adolescente que cometeu matricídio chocou a sociedade, alimentando as manchetes e a indignação pública. Tal como a tragédia vivida em Castro Daire, onde adolescentes alegadamente envolvidos num pacto de morte abalaram toda a comunidade escolar, estes acontecimentos são sintomas de uma crise de fundo. As alterações comportamentais extremas já não podem continuar a ser tratadas apenas como “problemas de ordem pública” ou “traumas individuais”. Mais do que compreender o porquê destes gestos, importa questionar o onde estávamos nós, famílias, escolas e sociedade, quando o sofrimento começou a crescer em silêncio, sem voz nem resposta.
A investigação aponta para uma forte relação entre a exposição à violência, seja como vítima, testemunha ou partícipe, e o risco acrescido de desenvolver perturbações psiquiátricas como a ansiedade, a depressão ou o stress pós-traumático. Em Portugal, o relatório Saúde Mental dos Jovens identifica igualmente fatores como o bullying, o cyberbullying, a violência no namoro, a solidão e as relações familiares conflituosas como determinantes da vulnerabilidade psicológica. O aumento da delinquência juvenil, registado pelo RASI, obriga-nos a refletir sobre os nexos entre saúde mental, vigilância precoce e contextos de adversidade.
A contradição é evidente, fala-se muito sobre saúde mental, mas raramente esse discurso se traduz em redes de cuidado capazes de intercetar os percursos de risco dos nossos jovens. Fala-se em acolhimento psicológico nas escolas, mas quantos programas sistemáticos existem que articulem escola, família, serviços de saúde e comunidade? Fala-se em literacia emocional, mas quantos pais são realmente formados para exercer o seu papel de vínculo protetor? Fala-se em “prevenção” de forma abstrata, mas quantos profissionais detetam, a tempo, os sinais de isolamento, agressividade ou vulnerabilidade emocional antes de se converterem em violência?
No cerne do problema está o negligenciado valor da relação, da presença e do vínculo. Em contextos escolares, comunitários ou familiares, o contacto humano e o acompanhamento próximo (pais, professores, membros da comunidade escolar) constitui fator protetor. Pelo contrário, laços frágeis ou inexistentes aumentam exponencialmente o risco de sofrimento psicológico e de comportamentos violentos.
Impõe-se, por isso, uma política pública que se mobilize de forma real e coordenada:
- para uma intervenção precoce e integrada, capaz de detetar sinais de sofrimento emocional e comportamentos desviantes nas escolas e famílias, articulando serviços de saúde mental, assistência social e comunidade local;
- para o fortalecimento das redes de cuidado, onde pais, professores, associações e instituições de saúde se assumam como âncoras de suporte efetivo, dotando o espaço escolar de mais equipas de psicologia;
- e para a transformação do discurso em prática, através da formação parental, da capacitação docente e da construção de comunidades mais atentas e solidárias.
Falar sensibiliza e desperta consciências, mas por si só, não impede que o sofrimento visível ou oculto se transforme em tragédia. A verdadeira mudança exige que passemos da palavra à ação, da escola à família, da comunidade ao serviço de saúde, do discurso ao cuidado.
Autor
Luís Miguel Condeço
Professor na Escola Superior de Saúde de Viseu
Magazine Serrano A Voz Serrana para o Mundo