Início » Artigos de Opinião » Artigo de Luís Miguel Condeço—O lado certo da guerra

Artigo de Luís Miguel Condeço—O lado certo da guerra

Da Guarda a Beja, dista (em linha reta) sensivelmente o mesmo, que de Gaza ao país europeu mais próximo (Chipre). Este conflito, infelizmente também é nosso, como a guerra na Ucrânia! E ainda há poucas semanas, se evidenciava a mortandade dos dois conflitos, ultrapassando o milhão e meio de vítimas (mortos e feridos). E na Europa, a história vai-se repetindo com muito frequência e amplitude.

Há pouco mais de século e meio (24 de junho de 1859), a violência das guerras atingia níveis sem precedentes. No norte de Itália, o empresário suíço Jean‑Henri Dunant acabado de chegar a Castiglione delle Stiviere, foi surpreendido pela sangrenta batalha de Solferino, confronto brutal entre exércitos austríacos e franco‑sardos que durou aproximadamente nove horas. Acredita-se que o número de feridos e mortos, ultrapassou os 40 000 soldados, que nos dias seguintes chegaram a Castiglione, transformando a localidade num hospital improvisado. Os residentes esforçavam-se por ajudar os feridos da batalha, e Dunant colaborava nesse esforço, impressionando-o os cuidados prestados pelas mulheres da vila a soldados aliados e inimigos, não olhando à farda que envergavam. Esse esforço espontâneo inspirou‑o a escrever Un souvenir de Solférino, em que sublinhou a urgente necessidade de criar uma associação permanente para cuidar dos feridos em tempos de paz e guerra.

De facto, a batalha de Solferino deu origem a um movimento global de ajuda humanitária e à regulamentação da proteção dos feridos e dos civis em guerra.

Em 1863, Dunant reuniu‑se com diversas personalidades e representantes de dezasseis estados europeus em Genebra, criando o Comité Internacional das Sociedades de Ajuda aos Feridos, antecessor do Comité Internacional da Cruz Vermelha. No ano seguinte (1864), realizou‑se a conferência diplomática que originou a Primeira Convenção de Genebra, intitulada “Sobre a melhoria do destino dos militares feridos em campanha”. Nesta convenção, assinada por doze países (incluindo Portugal), surgiu pela primeira vez o símbolo que conhecemos hoje, a cruz vermelha sobre fundo branco, que deveria ser utilizada pelos membros do Comité.

 

O símbolo da Cruz Vermelha (e, mais tarde, do Crescente Vermelho e do Cristal Vermelho) tornou‑se um farol de esperança em campos de batalha, sob a proteção jurídica das convenções. Os emblemas identificam quem está exclusivamente ao serviço da humanidade, e quem deve permanecer intocados pelo conflito.

As Convenções de Genebra estabeleceram normas básicas do Direito Internacional Humanitário, como o tratamento sem discriminação de feridos e dos doentes, a proteção dos hospitais e dos profissionais, e o respeito pela neutralidade médica. Foram adotadas mais três convenções (1906, 1929, 1949), que estenderam a proteção aos náufragos, regularam os direitos e o tratamento dos prisioneiros de guerra e introduziram proteções explícitas para civis. Os protocolos de 1977 e de 2005 adaptaram o Direito Humanitário a conflitos armados não‑internacionais e introduziram símbolos alternativos com o mesmo valor legal.

O Comité Internacional da Cruz Vermelha, formalizado em 1876, assume o papel de guardião destas convenções. Conjuntamente com o Crescente Vermelho agrupa 191 sociedades nacionais e mobiliza cerca de 80 milhões de pessoas, reafirmando-se como organismo “neutro, imparcial e independente”. Atua exclusivamente com base no Direito Humanitário, promovendo o respeito por estas normas, visitando detidos e prisioneiros, prestando cuidados médicos diretamente em zonas de conflito e instaurando diálogo diplomático quando necessárias negociações para permitir ajuda humanitária.

O impacto destas conquistas não se limitou a legislações ou a símbolos, a Cruz Vermelha foi laureada com o Prémio Nobel da Paz por três vezes (1917, 1944 e 1963), reconhecendo a sua ação vital durante as guerras mundiais e ao longo de um século de intervenção humanitária. Assim como, o seu fundador Jean-Henri Dunant (juntamente com Frédéric Passy), recebeu o primeiro Prémio Nobel da Paz em 1901.

Hoje, vemos ataques a estruturas e instalações prestadoras de cuidados de saúde, sequestros e mortes de profissionais de saúde, ou bloqueios de ajuda humanitária, e nunca é de mais referir a importância dos princípios inerentes ao Direito Internacional Humanitário. Reafirmar o legado de Dunant e das Convenções é insistir que, mesmo na guerra, há regras. E as regras existem para salvar vidas. Este é o lado certo da guerra.

Autor

Luís Miguel Condeço

Professor na Escola Superior de Saúde de Viseu

 

Publicidade...