Início » Artigos de Opinião » Artigo de opinião de Luís Miguel Condeço—-Arder por dentro

Artigo de opinião de Luís Miguel Condeço—-Arder por dentro

Outra vez!

Voltou a viver-se neste mês de agosto um cenário de fogo quase permanente. As imagens repetem-se: aldeias cercadas pelas chamas, populações em fuga, habitações destruídas, animais mortos, bombeiros exaustos. Mas, para lá da destruição visível, há feridas silenciosas que se instalam e que perduram além do rescaldo, como o impacto dos incêndios na saúde das populações.

Segundo o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, arderam já este ano cerca de 234 mil hectares, o valor mais elevado desde 2017, quando as tragédias de Pedrógão e de outubro desse ano marcaram para sempre a memória coletiva dos portugueses. Só em agosto, registaram-se dezenas de grandes incêndios, incluindo o megaincêndio que deflagrou em Arganil, responsável pela maior área ardida deste ano. E mais importante, a perda de vidas humanas que se somam a esta tragédia, contando-se oito mortes diretamente associadas ao fogo.

Os números ajudam a perceber a dimensão do problema. Entre 2010 e 2025, a área florestal perdida soma 1,97 milhões de hectares, o equivalente a 60% de toda a floresta portuguesa. Distritos como Coimbra, Viseu e Castelo Branco concentram mais de 320 mil hectares ardidos na última década, refletindo a vulnerabilidade crónica do interior. Não se trata apenas de hectares de pinhal e eucalipto, mas de comunidades expostas a uma ameaça repetida, que compromete a sua saúde e qualidade de vida.

A ciência é clara, a exposição ao fumo e às partículas finas libertadas pelos incêndios aumenta os riscos de doenças respiratórias e cardiovasculares. Tosse, falta de ar (dispneia), agudizações de asma ou agravamento da doença pulmonar obstrutiva crónica tornam-se frequentes nas semanas mais críticas. Idosos, crianças e pessoas com doenças respiratórias são os mais atingidos, mas ninguém fica imune. E de forma oficiosa, sabemos que as unidades hospitalares das zonas afetadas registam sempre picos de procura nestes períodos, confirmando que os incêndios florestais são também um problema de saúde pública.

Há, contudo, um outro impacto que raramente ocupa o espaço mediático, ou que por pequenos “fogachos” vai sendo abordado por alguns especialistas nos programas televisivos, e que nos faz “arder por dentro” – o impacto na saúde mental das populações. Quem vive a ameaça das chamas, quem perde a casa ou os terrenos agrícolas e florestais, carrega cicatrizes emocionais profundas. Ansiedade, insónias, depressão e até perturbação de stress pós-traumático são cada vez mais identificados em comunidades atingidas. E também as equipas de socorro e emergência, como os bombeiros, submetidos a uma pressão contínua e muitas vezes desumana, estão igualmente em risco.

O combate aos incêndios exige meios no terreno, mas também uma estratégia integrada do sistema de saúde. É urgente investir em programas de vigilância respiratória para grupos vulneráveis, criar equipas de apoio psicológico nas zonas afetadas e assumir que cada grande incêndio é também uma crise de saúde pública. Ao mesmo tempo, não podemos esquecer a prevenção: mais de 70% das ignições em Portugal têm origem em atividades humanas, desde queimadas agrícolas ao fogo posto. Sem educação, fiscalização e políticas de ordenamento, os números não se irão alterar.

O verão de 2025 deixa, mais uma vez, a lição dolorosa de que os incêndios não se medem apenas em hectares perdidos. Medem-se em vidas interrompidas, em corpos fragilizados pela poluição, em mentes marcadas pelo medo. A floresta pode regenerar-se com o tempo. As pessoas, sem apoio, não. E é por elas que este combate não pode nunca terminar, mesmo quando a última chama se apaga.

Autor

Luís Miguel Condeço

Professor na Escola Superior de Saúde de Viseu

Publicidade...