Início » Artigos de Opinião » Artigo de Luís Miguel Condeço—O longo caminho para nascer

Artigo de Luís Miguel Condeço—O longo caminho para nascer

Na madrugada ainda fresca do outono algarvio, uma ambulância acelera na A22 com uma grávida em trabalho de parto avançado. Horas antes, esta mulher tinha sido observada no Hospital de Portimão e enviada para casa, mais tarde a viagem tornava-se inesperadamente no cenário de um nascimento. O bebé acabou por nascer ali mesmo, entre sirenes, num corredor improvisado sobre rodas, e o país acordou com esta notícia e inquietação de que não se tratava de um caso isolado.

Até setembro de 2025, registaram-se 32 partos em ambulâncias e 154 partos pré-hospitalares, ultrapassando os totais anuais de anos anteriores. Este fenómeno inquietante não é apenas um episódio dramático ou uma fatalidade geográfica, mas é um espelho da fragilidades profunda do sistema de saúde. E, ironicamente, parece aproximar-nos de um passado que julgávamos definitivamente esquecido.

Para compreender o alcance deste retrocesso, é essencial recuar à primeira metade do século XX, quando o parto em Portugal, acontecia sobretudo em casa. Até 1961, cerca de 80% dos nascimentos eram domiciliares, assistidos por parteiras tradicionais ou curiosas (mulheres experientes, mas sem formação específica na área). O parto era um acontecimento profundamente comunitário, mas também profundamente arriscado. As histórias recolhidas pela historiografia mostram mulheres que caminhavam quilómetros até às maternidades, casos dramáticos de partos complicados e elevadas taxas de mortalidade infantil e perinatal. Em 1975, a mortalidade perinatal atingia os 31,8 por mil nados-vivos, valor que consideramos inaceitável.

O investimento na saúde materna e a modernização obstétrica alterou profundamente este cenário. A inauguração da Maternidade Dr. Alfredo da Costa, em 1932, representou um marco importante nos cuidados perinatais, mas foi sobretudo a partir das décadas de 1960 e 1970 que o parto se deslocou em massa para o hospital. A criação do Serviço Nacional de Saúde consolidou esta transição, oferecendo cuidados especializados, vigilância pré-natal e maior segurança clínica. Os resultados foram de tal forma notórios, que em 2012, a mortalidade perinatal desceu para 4,2 por mil nados-vivos, uma das descidas mais significativas da Europa. A hospitalização do parto salvou vidas, mesmo que tenha trazido consigo uma crescente medicalização, com taxas elevadas de cesarianas e intervenções instrumentais.

Este progresso não veio “sozinho”, trouxe novos mapas e novas fronteiras. O encerramento de pequenas maternidades em zonas rurais e do interior do país, justificado pela concentração de recursos e pela necessidade de equipas diferenciadas, fez com que muitas mulheres ficassem dependentes de longas deslocações. Como reconhece Joanna White, o fenómeno dos “partos em trânsito” não é uma surpresa estatística, é a consequência direta de um sistema que concentrou competências, mas não garantiu acessibilidade territorial.

Hoje, a situação agrava-se pela instabilidade das urgências de obstetrícia, pela dificuldade em fixar profissionais especializados e pelas limitações crónicas de recursos. A cada fim de semana ou feriado, muitas grávidas vivem na incerteza sobre qual hospital as poderá receber. E quando nascer depende do código postal, o parto transforma-se de novo, num risco geograficamente determinado.

O mais inquietante é que este retorno a cenários improvisados acontece num contexto, em que os enfermeiros especialistas em saúde materna e obstétrica são profissionais altamente qualificados, alinhados com padrões europeus de formação e competência. Paralelamente, cresce no país um movimento de humanização do parto, que valoriza práticas baseadas em evidência e a continuidade de cuidados. A existência de equipas multidisciplinares e projetos de parto humanizado mostra uma sociedade mais informada, mais exigente e mais orientada para a autonomia da mulher. No entanto, estes avanços convivem paradoxalmente, com partos feitos em ambulâncias, à pressa, sem condições adequadas e muito aquém da dignidade que o momento exige.

É difícil aceitar que este seja apenas mais um dado na crónica dos constrangimentos do Serviço Nacional de Saúde. Um parto na estrada não é um mero dado estatístico, é uma marca profunda da desigualdade territorial e da incapacidade de garantir um serviço essencial. A geografia, antiga fronteira entre privilégio e desproteção, não pode determinar quem nasce em segurança e quem nasce em improviso.

Autor

Luís Miguel Condeço

Professor na Escola Superior de Saúde de Viseu

Publicidade...