Na madrugada ainda fresca do outono algarvio, uma ambulância acelera na A22 com uma grávida em trabalho de parto avançado. Horas antes, esta mulher tinha sido observada no Hospital de Portimão e enviada para casa, mais tarde a viagem tornava-se inesperadamente no cenário de um nascimento. O bebé acabou por nascer ali mesmo, entre sirenes, num corredor improvisado sobre rodas, e o país acordou com esta notícia e inquietação de que não se tratava de um caso isolado.
Até setembro de 2025, registaram-se 32 partos em ambulâncias e 154 partos pré-hospitalares, ultrapassando os totais anuais de anos anteriores. Este fenómeno inquietante não é apenas um episódio dramático ou uma fatalidade geográfica, mas é um espelho da fragilidades profunda do sistema de saúde. E, ironicamente, parece aproximar-nos de um passado que julgávamos definitivamente esquecido.
Para compreender o alcance deste retrocesso, é essencial recuar à primeira metade do século XX, quando o parto em Portugal, acontecia sobretudo em casa. Até 1961, cerca de 80% dos nascimentos eram domiciliares, assistidos por parteiras tradicionais ou curiosas (mulheres experientes, mas sem formação específica na área). O parto era um acontecimento profundamente comunitário, mas também profundamente arriscado. As histórias recolhidas pela historiografia mostram mulheres que caminhavam quilómetros até às maternidades, casos dramáticos de partos complicados e elevadas taxas de mortalidade infantil e perinatal. Em 1975, a mortalidade perinatal atingia os 31,8 por mil nados-vivos, valor que consideramos inaceitável.
O investimento na saúde materna e a modernização obstétrica alterou profundamente este cenário. A inauguração da Maternidade Dr. Alfredo da Costa, em 1932, representou um marco importante nos cuidados perinatais, mas foi sobretudo a partir das décadas de 1960 e 1970 que o parto se deslocou em massa para o hospital. A criação do Serviço Nacional de Saúde consolidou esta transição, oferecendo cuidados especializados, vigilância pré-natal e maior segurança clínica. Os resultados foram de tal forma notórios, que em 2012, a mortalidade perinatal desceu para 4,2 por mil nados-vivos, uma das descidas mais significativas da Europa. A hospitalização do parto salvou vidas, mesmo que tenha trazido consigo uma crescente medicalização, com taxas elevadas de cesarianas e intervenções instrumentais.
Este progresso não veio “sozinho”, trouxe novos mapas e novas fronteiras. O encerramento de pequenas maternidades em zonas rurais e do interior do país, justificado pela concentração de recursos e pela necessidade de equipas diferenciadas, fez com que muitas mulheres ficassem dependentes de longas deslocações. Como reconhece Joanna White, o fenómeno dos “partos em trânsito” não é uma surpresa estatística, é a consequência direta de um sistema que concentrou competências, mas não garantiu acessibilidade territorial.
Hoje, a situação agrava-se pela instabilidade das urgências de obstetrícia, pela dificuldade em fixar profissionais especializados e pelas limitações crónicas de recursos. A cada fim de semana ou feriado, muitas grávidas vivem na incerteza sobre qual hospital as poderá receber. E quando nascer depende do código postal, o parto transforma-se de novo, num risco geograficamente determinado.
O mais inquietante é que este retorno a cenários improvisados acontece num contexto, em que os enfermeiros especialistas em saúde materna e obstétrica são profissionais altamente qualificados, alinhados com padrões europeus de formação e competência. Paralelamente, cresce no país um movimento de humanização do parto, que valoriza práticas baseadas em evidência e a continuidade de cuidados. A existência de equipas multidisciplinares e projetos de parto humanizado mostra uma sociedade mais informada, mais exigente e mais orientada para a autonomia da mulher. No entanto, estes avanços convivem paradoxalmente, com partos feitos em ambulâncias, à pressa, sem condições adequadas e muito aquém da dignidade que o momento exige.
É difícil aceitar que este seja apenas mais um dado na crónica dos constrangimentos do Serviço Nacional de Saúde. Um parto na estrada não é um mero dado estatístico, é uma marca profunda da desigualdade territorial e da incapacidade de garantir um serviço essencial. A geografia, antiga fronteira entre privilégio e desproteção, não pode determinar quem nasce em segurança e quem nasce em improviso.
Autor
Luís Miguel Condeço
Professor na Escola Superior de Saúde de Viseu
Magazine Serrano A Voz Serrana para o Mundo