Neste Domingo, celebramos o “Mistério de Deus”. Talvez seja uma das celebrações que mais nos custa a entender, porque para cada celebração somos congregados “em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo”. Ou como diz São Paulo, na segunda leitura: “a graça de Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco”. Estamos tão habituados a ouvir estas palavras que nem pensamos no que estamos a dizer. Ao menos uma vez por ano, a Igreja convida-nos a reflectir e a celebrar a solenidade do nosso Deus, que é Trindade, aberto ao amor e necessitado de amor. Deus é relação entre pessoas como o amor é relação entre pessoas. O amor esconde e revela Deus.
Deus é amor (1Jo 4,8). Esta definição da primeira carta de São João revela o dinamismo da história da salvação: Deus faz uma promessa, a Aliança, com a humanidade, e perante a infidelidade humana Deus responde com o perdão e a reconciliação. Isto já podemos constatar no Antigo Testamento. A primeira leitura narrava-nos o momento em que Deus renova a Aliança, depois do episódio do bezerro de ouro. O povo foi infiel ao Senhor, que o tinha libertado da escravidão do Egipto. Moisés intercede pelo povo para que se revele o rosto misericordioso de Deus, a quem não agrada castigar. No decorrer do livro do Êxodo, isto vai repetir-se em diversas ocasiões: Deus responde sempre com perdão às infidelidades do povo.
Também no Novo Testamento, podemos constatar este dinamismo redentor. A salvação depende da opção de acolher ou de rejeitar Jesus; por isso, “acreditar” nele é aceitá-lo, alcançando, assim, a vida eterna. Esta parte final do diálogo de Jesus com Nicodemos insiste, sobretudo, na ideia de que a vinda do Filho ao mundo é a realização deste amor salvífico e sem limites de Deus. Mais que enviar o seu Filho, Deus oferece-o a todos nós.
Como podemos exprimir um mistério tão insondável? É tão conhecida a imagem do Pai sentado, sustentando nas mãos a cruz, onde está pregado o seu Filho; por cima deles, está o Espírito Santo, em forma de pomba, iluminando-os e unindo-os no seu amor! É uma imagem que nos recorda que Deus assumiu a nossa natureza humana e que nos convida a participar na sua vida para sempre. Nos braços abertos do Filho, todos podemos sentir o abraço de Deus. O Filho é a imagem da doação e da entrega de Deus; é a melhor expressão de um Deus que é Pai; é a melhor metáfora para revelar a relação, manifestada no Espírito Santo que nos ilumina e cuida. É imenso o amor que nos tem, a dor que sente por nós, a disposição de se sacrificar para o nosso bem, a proximidade a tudo e a todos. Por isso, entrega-se na Cruz, que, ao mesmo tempo, esconde e revela tudo isto. A cruz, cravada no solo, é uma árvore que nos acolhe com os braços abertos. É o sinal da nossa salvação e do nosso perdão. Uma árvore com três braços. Um Deus em três pessoas. Um Deus de relação, comunidade e compromisso.
Não percamos tempo em tentar explicar racionalmente a realidade de um único Deus em três pessoas. Em vez de tentar explicar o “como”, procuremos contemplar “quem” nos espera e não se cansa de esperar: Deus, “clemente e compassivo, sem pressa para Se indignar e cheio de misericórdia e fidelidade”. É Nele que devemos colocar toda a nossa confiança e esperança.
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04-06-2023
Leitura Espiritual
«Para que todo o homem que acredita nele tenha a vida eterna»
Insensatos, que não cessais de revelar-vos indiscretos na procura da Trindade, sem vos contentardes em acreditar tão-só que Ela existe, tal como vos orienta o Apóstolo, ao dizer: «quem se aproxima de Deus tem de acreditar que Ele existe e recompensa aqueles que O procuram» (Hb 11,6). Que ninguém se ocupe de questões supérfluas, mas se contente em apreender o conteúdo das Escrituras, que dizem que o Pai é uma fonte — «o meu povo abandonou-Me, a Mim, nascente de águas vivas» (Jr 2,13); «abandonaste a fonte da sabedoria» (Br 3,12) — e é luz: «Deus é luz» (1Jo 1,5). O Filho, em relação a essa fonte, é um rio, de acordo com o salmo: «Enches, a transbordar, o rio caudaloso» (Sl 65,10), e em relação à luz é «resplendor da sua glória e imagem fiel da sua substância» (Hb 1,3).
Assim sendo, o Pai é luz, e o Filho o seu resplendor. E é no Filho que somos iluminados pelo Espírito, como diz também Paulo: «que o Pai vos dê o Espírito de sabedoria e vo-lo revele, para O conhecerdes, e sejam iluminados os olhos do vosso coração» (Ef 1,17-18). É, porém, Cristo quem nos ilumina nele quando somos iluminados pelo Espírito, pois a Escritura diz: «O Verbo era a Luz verdadeira que, ao vir ao mundo, a todo o homem ilumina» (Jo 1,9).
Para além disso, sendo o Pai fonte e Cristo rio, é dito igualmente que bebemos do Espírito: «e todos bebemos de um só Espírito» (1Cor 12,13). Dessedentados, pois, pelo Espírito, é de Cristo que bebemos, porquanto bebemos «de um rochedo espiritual que os seguia, e esse rochedo era Cristo» (1Cor 10,4). Ora, sendo o Pai o «único Deus sábio» (Rm 16,27), o Filho é a sua sabedoria, porque «Cristo é poder e sabedoria de Deus» (1Cor 1,24). Por conseguinte, ao recebermos o Espírito de sabedoria, recebemos o Filho e adquirimos a sua sabedoria. O Filho é a vida, pois Ele disse: «Eu sou a Vida» (Jo 14,6).
Mas também se diz na Escritura que somos vivificados pelo Espírito, quando Paulo afirma que «o Pai, que ressuscitou Cristo de entre os mortos, também dará vida aos vossos corpos mortais, por meio do seu Espírito que habita em vós» (Rm 8,11). Ao sermos vivificados pelo Espírito, é Cristo que Se faz vida em nós: «Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim» (Gl 2,20). Existindo assim no seio da Trindade uma tal correspondência e uma tal unidade, quem poderá separar o Filho do Pai, e o Espírito do Filho ou do Pai? O mistério de Deus não é concedido ao nosso ser com discursos eloquentes, mas pela fé e por via de preces respeitosas. (Santo Atanásio, 295-373, bispo de Alexandria, doutor da Igreja, Carta I a Serapião, 19; PG 26, 573).