“Sentimos de alguma forma recompensados pelo nosso esforço e dedicação a um projeto”
O Centro Cultural de Celorico da Beira recebe o documentário português Play it Again, Yuki, do realizador João Ganho, no próximo dia 11 de setembro, pelas 21H30, no âmbito da sua estreia nacional.
A obra foi laureada com o Prémio do Público – FILMin para melhor filme na 30ª edição do Festival Caminhos do Cinema Português (2024), em Coimbra. Para tal, fomos conversar com o realizador João Ganho, onde nos explicou como tal foi possivel fazer este documentário.
Magazine serrano- Como surgiu esta ideia de fazer o documentário?
João Ganho – Quando preparávamos a gravação do álbum da Yuki Rodrigues, “Search for Eden”, que marcava o seu regresso à música.
Durante a pré-produção do álbum, que eu ia gravar, uma vez que as minhas origens profissionais estão na engenharia de som, fui ficando cada vez mais interessado na história da Yuki. Havia ali muito sofrimento sublimado (e eu acho que a própria Yuki não se apercebeu disso durante muito tempo até ver o filme), mas ao mesmo tempo muita força de vontade de ultrapassar a sua incapacidade na mão e lidar com a mesma de uma forma positiva e inspiradora. Propus-me de imediato escrever um esboço daquilo que pretendia filmar. No entanto, na altura tinha a ideia de fazer um filme com 25 minutos, cujo foco principal seria as sessões de gravação em Londres, na famosa sala do Henry Wood Hall, apoiadas numa única entrevista em casa da Yuki. Fomos para Londres no final de Fevereiro de 2023 carregados de material de som para gravar o álbum e de uma câmara para fazer o filme. Estávamos a fazer dois projectos ao mesmo tempo em cinco dias, no estrangeiro e com toda a pressão que isso envolve!
Quando voltámos a Portugal e revi o material filmado, comecei a descobrir que tinha algo maior, em todos os sentidos, do que um filme de promoção, embora este já estivesse pensado para ter laivos biográficos da Yuki, pelo menos sobre a fase de sofrimento. Depois, durante e edição e mistura do álbum no meu estúdio, e sempre com a câmara a filmar todas as sessões, a Yuki foi-se sentindo mais confiante e mais à vontade. Mais confiante comigo e com a produtora, a Cláudia Pereira da Silva, e também porque se foi apercebendo de que, apesar da sua condição, tinha acabado de concretizar um excelente álbum, para mais agora também no papel de compositora. A vida continuava, por fim! Começou por isso a falar da sua lesão de uma forma mais espontânea. Aliás, durante estas sessões em estúdio de edição e mistura do álbum, aquilo que no filme podem parecer entrevistas (no terceiro acto, como costumo dizer), não foram planeadas como tal. A câmara estava sempre ligada e, durante os intervalos do trabalho, a Yuki sentava-se no sofá do estúdio e falava sobre muita coisa, inclusivamente das etapas seguintes que a Cláudia tinha em agenda para retomar a sua carreira. Obviamente que, aqui e ali, eu e a Cláudia íamos fazendo as perguntas sobre a lesão que nos interessava ver respondidas no meio daquelas longas conversas – lembro-me que só um desses intervalos tem quase hora e meia de conversa consecutiva! Depois, foi um exaustivo e minucioso trabalho de visionamento de dezenas de horas de filmagens e escolher os momentos chave em que falava da lesão neuro-muscular e sobre o seu passado. Tudo isto fez-me perceber, no último dia de filmagens, a 11 de Novembro de 2023, que tinha material para fazer uma longa-metragem sobre o sofrimento, a resiliência e a superação de alguém cujos sonhos tinham sido despedaçados. Algo que acaba por dizer muito a muitos espectadores que passaram pelo mesmo processo de perda, luta e “sobrevivência”.
Em que se baseou para o fazer?
O cinema continua a ser a arte mais completa de todas. Tem texto, imagem e som. A capacidade de comunicar é, por isso, potenciada e transformou-se no meio por excelência para se contar uma história pessoal que está intimamente ligada à música. Aliás, costumo dizer que a personagem principal deste documentário é a música, ou até mesmo a arte e a nossa necessidade dela enquanto seres humanos que somos. Em termos mais criativos e específicos, posso dizer que, durante as gravações em Londres, houve um filme histórico que esteve sempre presente no meu inconsciente e que é um dos marcos do documentarismo sobre música: o “The Golden Ring – Sir George Solti”, do realizador Humphrey Burton, produzido pela BBC em 1965 sobre a gravação da ópera de Wagner, O Crepúsculo dos Deuses. Depois, em termos da forma de contar a história, e porque, como já disse, a personagem principal é a música, fui inspirado pelo “Excalibur” do John Boorman. Naquele filme, o realizador editou a imagem de forma síncrona com a música de Wagner, Carl Orff e Beethoven. Sempre achei magistral essa forma de editar as imagens de um filme tendo por base música já existente. Assim, decidi montar todo o “Play it Again, Yuki” de forma síncrona com a música que gravámos para o álbum. Obviamente que temos as cenas no interior do Henry Wood Hall em que a música é, como se diz na gíria cinematográfica, diegética, ou seja é justificada pela acção que vemos no ecrã. Mas, naqueles momentos em que a música é usada como pano de fundo, todos os planos ilustrativos e depoimentos foram “encaixados” nos compassos e no tempo da música da Yuki. Fiz o inverso daquilo que é habitual no cinema, em que as imagens são editadas e só depois é que vem alguém compor a música que sincronize com as cenas e os planos. Já o disse várias vezes: nesse sentido, este filme foi o meu “Excalibur” e acho que o ritmo da narrativa beneficiou muito com esta estratégia de edição inversa.
Recentemente viu o documentário premiado, motivo de orgulho e presenteia todo esforço de uma equipa?
Receber um prémio é sempre muito bom, exactamente porque nos sentimos de alguma forma recompensados pelo nosso esforço e dedicação a um projecto. Sobretudo quando veio do público, como foi o caso do “Play it Again, Yuki”. No entanto, posso dizer que, em termos práticos, este prémio em nada nos beneficiou. Fomos ignorados pelos grandes exibidores do país, como a NOS e a UCI, que nem tiveram qualquer curiosidade em ver um “prémio do público” para decidir se merecia estar ou não nas suas salas. E fomos ignorados ou rejeitados pela generalidade das salas da cadeia de cine-teatros municipais do país, sem ninguém ter visto sequer o filme. Como diz a Cláudia com ironia, o único efeito prático do prémio do público foi mais uma coroa de louros no grafismo do poster do filme…
Esta semana vai passar na sala em Celorico, espera-se uma sala bem composta?
Conto com isso. É curioso porque, naqueles cine-teatros municipais que nos vão receber fora de Lisboa, tivemos desde o início uma receptividade e entusiasmo por parte dos responsáveis municipais envolvidos nos eventos culturais que não encontrámos, nem de longe nem de perto, nas grandes cidades. Posso dizer que encontrámos muita arrogância e prepotência perante um realizador, uma produtora e uma distribuidora que estão agora a lançar o seu primeiro filme, mesmo que tenha sido premiado. Portanto, tenho quase a certeza de que o entusiasmo que encontrámos nos programadores culturais e técnicos de sala de Celorico da Beira reflecte o da população. Confesso mesmo que estou mais ansioso por esta exibição única em Celorico do que estava no dia da estreia nacional em Lisboa, onde até o interesse do público por um filme desconhecido é quase ausente, só porque não vem dos sítios do costume, das produtoras e dos realizadores subsidiados pelo Estado, ou porque não é mencionado nas páginas do Expresso e do Ipsilon, ambos doutrinários num tipo de cinema português que só interessa a um grupo muito restrito de público.
Que mensagem deixa a toda a comunidade?
Dêem-nos uma oportunidade para mostrar que se pode fazer um filme que toca os espectadores sem precisar de subsídios do Estado. Além do mais, a música, composta e interpretada pela Yuki Rodrigues, é lindíssima!